Um
problema, aparentemente pontual, explode nas universidades federais. Não é
novo. Ficou mais evidente nos últimos anos. O número diminuto de vagas
potencializa e acirra a luta de estudantes por uma cadeira nas universidades.
Nessa briga, os mais abastados reivindicam que a disputa seja por mérito de
conhecimento. Do outro lado, as intituladas minorias – que somadas são maioria –
exigem que os critérios de inclusão sejam utilizados.
A princípio, esses dois conceitos –
inclusão e mérito – poderiam conviver sem embaraços. Os que se beneficiam do
critério de inclusão, não contestam o fato de que vagas sejam ofertadas por
mérito de conhecimento. Entretanto, a recíproca não é verdadeira. Então surgem
os litígios. Na prática, as universidades federais e estaduais são obrigadas a
utilizar o sistema de cotas raciais e sociais para ocupação de vagas. Nesse
sistema, a disputa por vagas se dá por questões como cor da pele, renda e
origem escolar secundarista.
A ideia das cotas de fato é incluir
jovens e adultos que, historicamente, não tiveram a oportunidade de ter uma
formação de educação básica adequada e qualificada. Jovens que, por conta de
sua cor ou devido a sua origem desafortunada, e por diversas outras razões e circunstâncias,
ficaram fragilizados educacionalmente. Fato ou fatos que os impedem de
concorrer com igualdade de forças com os que, por sorte da vida, tiveram a
oportunidade de frequentar os melhores colégios e com dedicação exclusiva aos
estudos. Nessa balança da vida, de um lado temos as minorias – pardos, negros,
afrodescendentes e os desafortunados. E noutro lado, os brancos afortunados e
outras cores abastardas.
No processo seletivo das universidades
públicas, a disputa se dá entre iguais. Brancos disputam com brancos. E assim
nas outras cores e guetos. Porém, proporcionalmente, as minorias têm mais
vagas, em virtude do número diminuto de inscritos em relação ao percentual de
vagas destinadas ao sistema de cotas. O resultado desse modelo de disputa por
vagas em universidades públicas é o da segregação e acusações recíprocas. Não é
incomum o fato de centenas de alunos brancos abastados obterem notas muito
superiores aos dos que concorrem pelo sistema de cotas e, ainda assim, não
conseguirem sua cadeira na universidade. E isso se dá pelo exposto acima. O
fato de que a relação vagas/inscritos é menor nas cotas. Soma-se a isso o nível
educacional elevado dos brancos que reforça a disputa por notas cada vez mais
altas.
Essa disputa entre inclusão e mérito vai
se tornar mais evidente nos concursos públicos. Neles também já são usados os
critérios de inclusão, de toda natureza. Embora o artigo 5º da constituição afirme
que todos são iguais, sem distinção de qualquer natureza, na vida prática
sabemos que não é bem assim. Novamente, temos alguns motivos que são
determinantes para essa multidicotomia.
A meritocracia é algo muito presente no
discurso contemporâneo. Sobretudo nos Estados liberais. A aquisição de mérito
remonta dezenas de séculos atrás. Mudaram-se os reinos e as guerras, mas a
ideia de enaltecer as qualidades e capacidades dum indivíduo, de recompensá-lo,
ainda permanece. O problema dessa questão do mérito é que, ao lado passa o
imponderável. Como não considerar o fato de que uns nascem com todas as
condições e circunstâncias favoráveis e muitos não?
E esses fatos da vida são contribuintes
na construção de qualquer pessoa. Questões genéticas, geográficas, raciais,
culturais, históricas, econômicas e ambientais são relevantes na formação
física e intelectual de todos nós. Isso não significa, sob nenhuma hipótese, de
que há maiores ou melhores, mais ou menos inteligência, mais ou menos capacidades.
Por natureza, com raras exceções, somos todos providos das mesmas estruturas
cognitivas. Seus desenvolvimentos é que são potencializados de acordo com as
questões acima mencionadas.
Entendo, portanto, o mérito como o
desenvolvimento adequado das capacidades humanas. O mérito é um conceito que
visa, por natureza, o desenvolvimento constante das pessoas. Uma tentativa
justamente de não ser igual. E sim ser desigual. Maximizar suas capacidades e
habilidades e, principalmente, coloca-las em prática em seu próprio benefício. Não
se trata de uma ação egoísta. Afinal, ninguém pode cuidar de si mesmo senão ele
próprio. Ademais, podemos até concluir que essas pessoas não dependerão, com as
devidas exceções, do Estado. A conquista por mérito é benéfica, por várias
razões. O desafio hoje é a conciliação dos conceitos de meritocracia, igualdade
e inclusão. Eis o cerne do problema.
Se por um lado a ciência moderna tenha
sido determinante para a desmistificação do conceito de espécie humana,
provando que há apenas uma espécie, por outro lado, as políticas públicas de
igualdade, fortalecidas com o pós-guerra, não levaram isso ao pé da letra. O
pacto mundial de direitos humanos foi determinante para expandir as políticas
públicas de inclusão. Nelas, somos iguais enquanto espécie, mas desiguais em
oportunidades. E as circunstâncias que nos colocam desigualmente iguais, foram
criadas justamente por aqueles que usaram da força física para impor uma
supremacia racial em detrimento de supostas outras raças. Coisa que a ciência
moderna destruiu, mas que deixou um lastro de desigualdade de oportunidade.
Três conceitos são apregoados como
valores da humanidade: mérito, igualdade e inclusão. Nesta mesma ordem, do
antigo para o mais moderno, a questão é que temos de conquistar por mérito –
ainda que com oportunidades suspeitas -, temos de ser iguais – ainda que
desejemos ser desigual -, e devemos incluir oportunidade a todos – ainda que
muitos não mereçam. É uma equação difícil. E nesse caso é preciso que ordene e
hierarquize os conceitos. Colocá-los com a mesma relevância apenas nos deixará
sem uma referência definida. Rui Barbosa disse que “isonomia não é apenas
tratar igualmente os iguais, mas, sobretudo, tratar desigualmente os desiguais”.
Vivemos num período onde os conceitos e
valores são muitas vezes antagônicos. Não podem ser aplicados ao mesmo tempo
num mesmo caso. O que é mais justo: preferir o mais capaz e preterir o mais
necessitado? O que é mais injusto: penalizar o mais capaz ou premiar o menos
capaz? O que menos justo: excluir o incluído ou incluir ou excluído? Essas
questões não são exclusividades dos países capitalistas. A ideia de socialismo
diz a cada um conforme sua necessidade e capacidade. O desenvolvimento de tudo
sempre foi e sempre será por forças antagônicas. Tese, antítese e síntese.
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